05/04/2017

Leitugas ao vento

Aos lusitanos, habituados a manter as costas protegidas pelo resto da Península Ibérica, incomodam à vez vários ventos, sejam os de oeste, salpicados de água e maresia, os vindos de Espanha, secos e tórridos no Verão, as ventanias densas de areia do norte de África ou as aragens frias que sopram da Galiza. Na meia idade, basta que uma leve brisa de algum destes quadrantes nos desarranje o penteado para nos doerem os ossos. Anos depois, nenhuma gelosia se entreabrirá sem que soe o alerta de arrepios fatais. Com uma tal experiência e sabedoria eólicas, somos os primeiros a dar razão a muitas plantas que se recusam a colonizar parte da costa da Madeira, ou às que, resignadas a suportar os inevitáveis rigores climáticos a meio do Atlântico, ali mudam de forma e de feitio.

Poderá ter sido a necessidade de adaptação a vários habitats severos a origem de tantos endemismos da ilha da Madeira no género Sonchus. Os que hoje aqui se mostram florescem no Outono e Inverno, por isso em Dezembro encontrámos ainda flores viçosas. Apresentam poucas semelhanças com as espécies deste género que conhecemos na Península Ibérica, sem espinhos, penugem ou folhagem rugosa.


Sonchus ustulatus Lowe subsp. ustulatus



Sonchus ustulatus Lowe subsp. maderensis Aldridge


Estas são herbáceas perenes com uma só haste floral em cuja ponta balança uma cimeira de inflorescências amarelas. O aspecto mais bonito é, porém, a folhagem em roseta, tendo uma delas folhas carnudas e penatissectas, de lobos lanceolados e dentados, e a outra lobos laterais ovados ou rômbicos, por vezes sobrepostos, e de margens quase inteiras. Vivem em locais rochosos da costa: o S. ustulatus subsp. maderensis, descrito em 1976 e que também ocorre em Porto Santo e Desertas, precisa da humidade da costa norte da ilha da Madeira; o S. ustulatus subsp. ustulatus, que Lowe nomeou em 1831, prefere nichos secos e soalheiros da costa sul.

Sem abrigo que lhes valha, não se estranha o porte rasteiro de ambos, nenhum se elevando além dos 50 cm. Ficam, claro, muito aquém dos 2 metros de altura que pode atingir o S. pinnnatus (outro endemismo da ilha da Madeira, que ocorre em escarpas de montanha) ou dos 4 metros a que ascende o S. fruticosus (mais um endemismo, comum em ravinas e recantos húmidos de laurissilva no interior da ilha). Apresentam, parece-nos, algumas semelhanças com Sonchus da costa do norte de África, como o S. masguindalii ou o S. pustulatus, este de rochedos calcários costeiros de que se conhecem também populações em Almería, Espanha.

2 comentários :

bea disse...

Estas plantas quase impossíveis, de folhagem a nascer da rocha em redondos de verde, lembram-me um belo título de Raúl Brandão, "A pedra ainda espera dar flor".
BFS

bettips disse...

Que belo! E a analogia com a gente "a adaptar-se"...
Abçs