15/04/2014

Prado lilás



Linaria incarnata (Vent.) Spreng.


Não se sabe por que opta uma planta por ter flores com simetria radial ou apenas bilateral, mas os especialistas não duvidam que de uma ou de outra morfologia as plantas retiram algum benefício. O sucesso na polinização é tão incerto que qualquer ajuste estratégico nesse processo é bem-vindo; e, naturalmente, as formas mais bem adaptadas aos polinizadores têm mais êxito a propagarem-se. Contudo, sendo a simetria das flores um detalhe controlado por genes, nem tudo se explica com este argumento.

A meio do século XVIII, um colaborador de Lineu encontrou uma forma estranha de Linaria vulgaris que, em vez de flores com a simetria bilateral usual no género Linaria e um esporão de néctar, exibia simetria radial e vários esporões. Para Lineu, um tal desvio tinha gravosas consequências científicas e doutrinárias. A planta era semelhante à Linaria mas a estrutura das flores demasiado diferente, e Lineu não dispunha de uma explicação plausível para o prodígio. O ciclo de vida que Lineu descreve para as plantas com flor é simples, axiomático e irrepreensível: cada uma floresce e produz sementes que germinam nalgum outro lugar, assim se disseminando. Segundo Lineu, não há neste plano divino lugar ao surgimento de novas espécies a somar às que havia no princípio de todas as coisas. Sim, há híbridos (ele mesmo criou híbridos férteis por cruzamento artificial), mas Lineu entendia serem apenas variedades do que já existe, com pequenas alterações morfológicas que não afectavam a componente sexual da flor e, portanto, não justificavam a independência como espécies. Afinal, ainda que a terra firme nem sempre tenha tido igual extensão, a riqueza botânica que Lineu testemunhava tinha origem na arca de Noé, e portanto todas as espécies na Terra datavam da mesma época. E, todavia, ali estava uma Linaria bizarra, cujos progenitores Lineu desconhecia (porque, pelo dogma, tudo quanto nasce se parece com os seus progenitores) e cuja existência abalava os alicerces do criacionismo. Apesar disso, colocou a aberração num novo género, Peloria, e informou os seus pares do enigma que havia a decifrar.

Anos depois, Darwin voltou ao tema para exemplificar como a selecção natural é o arquitecto da evolução, mas tinha já melhores exemplos à mão: as columbinas, plantas do género Aquilegia, exibem idêntica diversidade morfológica nos esporões para se adaptarem ao comprimento da língua dos polinizadores (abelhas, colibris, traças), parecendo os seus genes hábeis a sintonizar o mecanismo que determina a forma dos nectários. Sabe-se hoje (P. Cubas et al., An epigenetic mutation responsible for natural variation in floral symmetry, Nature, 401, (1999), 157-61) que a forma pelórica da Linaria não se propaga por semente e que a simetria radial de facto impede a polinização da planta, o que, convenhamos, não parece trazer-lhe qualquer vantagem competitiva. Além disso, tem a mesma sequência genética da Linaria normal, embora os genes que controlam a simetria bilateral estejam inactivos. A mudança é rara e instável, mas resiste pois não compromete a propagação vegetativa da planta.

A Linaria das fotos, cujos registos de observação se restringem, por agora, ao centro do país, afigura-se-nos muito semelhante a duas outras espécies que ocorrem em Portugal continental: a Linaria elegans (da metade norte, com um esporão longo e floração que se estende do início da Primavera ao fim do Verão) e a Linaria ricardoi (endemismo português, de floração primaveril breve, com umas poucas populações restritas aos olivais do Alentejo). Ainda que não sejam óbvias, haverá, por certo, razões para esta especiação. A população que vimos formava um manto roxo num olival de terra mole e cor-de-tijolo em Alvaiázere, local que nos foi gentilmente indicado por Ana Júlia Pereira e Miguel Porto.

2 comentários :

Carlos M. Silva disse...

Olá
O fascínio destas espécies é-me enorme. E não param de surpreender. Só mesmo vós para prestarem, estudiosamente, atenção a pormenores que a um leigo como eu, passariam como da L. elegans!!!
Um género belíssimo e estranho pelo que indicam para esta!
Abraço
Carlos M. Silva

bettips disse...

Mesmo cor de Páscoa... Alegrias são!
Que prados vos floresçam sempre, amigos!
Abçs