31/12/2012

Terófito escandente

Vicia dasycarpa Ten.


Diz Luis Fernando Verissimo, numa das suas crónicas, que certas palavras são bem mais sugestivas quando não lhes sabemos o significado. Defenestrar, por exemplo, tem misteriosas ressonâncias eróticas antes de aprendermos que significa «atirar alguém pela janela». Nesse caso, embora o erotismo se perca, o mistério só se complica. Mesmo em épocas bárbaras, é de admitir que o acto pacífico de «estar encostado à ombreira da porta» fosse mais comum do que o gesto homicida de «arremessar gente pela janela»; no entanto, só para o segundo é que foi criado um verbo específico.

É de prever que o leitor menos versado no jargão botânico tenha dificuldades em decifrar o título aí em cima. Por uma vez, em lugar de prestar doutos esclarecimentos, colocamo-nos na mesma posição de inocente ignorância. Só pela combinação de sílabas, com aquele escandente a lembrar incêndio ou coisa pior, e o terófito, por via da tarifa, a sugerir taxas e impostos, dá ideia que «terófito escandente» é uma descrição justa do momento actual e, mais ainda, de tudo quanto nos espera em 2013. Nos balanços que daqui a um ano se fizerem, haverá talvez quem escreva, para nosso pesar, que «em 2013 atravessámos o terófito mais escandente de sempre».

Mas, apesar dos percalços da economia, as plantas silvestres irão em 2013 crescer e reproduzir-se com a mesma imperturbável confiança no futuro, e nós continuaremos de olho nelas. Se o orçamento minguado nos restringir o âmbito das viagens, então que o Havaí seja aqui. Qualquer silvado, ribeira poluída ou monte de entulho pode dar que fazer ao botânico amador consciencioso.

Foi num desses lugares desqualificados, em Alfena, que nos surgiu a Vicia dasycarpa, numa exuberância de floração digna dos melhores jardins. Já nos parecera tê-la encontrado no nordeste transmontano, nos prados felizes de Macedo de Cavaleiros, com os seus ramos floridos a disputar às orquídeas a primazia da cor. Dizemos «parecera» porque nisto de ervilhacas (nome habitual para as leguminosas do género Vicia) as certezas são fugidias. A Vicia dasycarpa integra, com a V. villosa, a V. eriocarpa e a V. pseudocracca, um quarteto de espécies de distinção problemática, todas elas trepadeiras anuais de vocação forrageira com hastes de 60 a 70 cm de comprimento e folhas pinadas rematadas por gavinhas. A planta das fotos não exibe a pilosidade característica da V. villosa, e tem demasiadas flores (cerca de 20 por inflorescência) para ser a V. eriocarpa ou a V. pseudocracca. A tabuleta que lhe pusemos, de Vicia dasycarpa, é pois a única que parece assentar-lhe. A Flora Ibérica, além de fornecer os detalhes morfológicos que permitem a identificação, ainda mais nos tranquiliza informando que nem a V. eriocarpa nem a V. pseudocracca ocorrem no Douro Litoral.

À abundância de flores da V. dasycarpa não corresponde igual safra de frutos. Não foi por termos chegado cedo, pois muitas flores tinham já murchado, mas vagens não vimos nenhuma. Segundo a Flora Ibérica, essa avareza é uma das peculiaridades da espécie, o que suscita a dúvida de como ela consegue sobreviver e propagar-se.

4 comentários :

Teresa disse...

Feliz año nuevo. Besitos.

bea disse...

Defenestrar não me soa a erótico; parece-me desde logo um primado da violência. E de imediato ergo involuntária, uma parede muito alta, com muito tijolo assente. E o significado diz que sim – atirar pela janela, como refere, não é o normal de se sair de algum lugar que as tenha (excepto se é a forma mais rápida de fugir a um perigo, mas ainda assim não se é defenestrado na medida em que é o próprio quem se atira, não sendo pedra de arremesso :)

Posto isto, encontro esses esterófitos – cujos também não me sugerem crise nem coisa que se lhe assemelhe – linnnndossss. E isso é o que mais me importa. Uma cor que por mais que tente não crio, a beleza pequena que me sobressalta e nasce a esmo nos lugares mais inóspitos. A que poucos ligam, em que exíguos olhos se demoram. E que, se alguns, é pequena maravilha. Parabéns.

“as plantas silvestres irão em 2013 crescer e reproduzir-se com a mesma imperturbável confiança no futuro, e nós continuaremos de olho nelas”

E isto sim, é o bom de haver natureza e leis imutáveis nela. E também de nos proprietários do blogue uma vontade que, a existir e ser boa, dá a si mesma a sua própria lei. Parece ser o caso.

Logo, aqui viremos. Nós. Aqueles que por acaso e condição – como eu – ficaram de olho num blogue que mostra o natural assentando-o na ciência das descobertas e dos nomes (a que me prendo menos; vim trazida por uma certa flor azul que pretendia oferecer e não consegui:))

Boa continuação. Gosto da companhia.

Bom ano aos dois, Paulo e Maria. Aqui. E mais na vida de todos os dias.

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelos comentários. Votos de um feliz 2013.

Anónimo disse...

Uma belíssima bandeira para um ano em que "os precalços da economia" não molestam esta natureza espontânea e quiçá, escondida da cobiça (des)humana.
E que o Havai "dos olhos" seja quando o D. com A. quiserem!
Um abraço da época.
da bettips