14/11/2011

Eis a fêmea

Athyrium filix-femina (L.) Roth


A insistência de Lineu em classificar as plantas de acordo com as suas peculiaridades sexuais causou na época algum escândalo. Não um escândalo de encher primeiras páginas, pois no século XVIII os jornais ainda estavam por inventar. Em vez de deflagrar em declarações públicas incendiárias, o escândalo ter-se-á resumido ao repúdio, por parte de muitos dos seus contemporâneos, de um método de classificação que no mínimo lhes parecia brejeiro. Mas o tempo lá fez o seu trabalho, e as ideias atrevidas de Lineu acabaram por tornar-se quase consensuais. É pela morfologia da flor que se reconhece a genealogia da planta, e a flor no mundo vegetal quer dizer sexo: há masculino e feminino, há sedução (dos polinizadores), há fecundação; não falta nenhum ingrediente escabroso.

O método de Lineu claudica face às plantas que não exibem orgãos de reprodução sexual. Os fetos, como sabemos, não querem saber de promiscuidades. Limitam-se a produzir esporos que dão origem a umas plantitas efémeras (chamadas gametófitos ou protalos) às quais cabe o acto procriador. A essas plantas que escondem (cripto) o casamento (gama) chamou Lineu criptogâmicas. Com todo esse secretismo, não espanta que o patriarca dos taxonomistas, no seu Species Plantarum, se visse em dificuldades para estabelecer relações de parentesco realistas entre os diversos fetos. O resultado é que muitas plantas que hoje reconhecemos como díspares se viram agrupadas em géneros que funcionavam, na prática, como posta restante. E, de todos os géneros de conveniência, nenhum foi mais amplo e indefinido do que o género Polypodium — que incluía não só o feto-fêmea acima retratado (a que Lineu chamou Polypodium filix-femina) como muitos outros posteriormente transferidos para uma multiplicidade de novos géneros: Dryopteris, Polystichum, Cystopteris, Cheilanthes, Davallia, Grammitis, etc. Das 70 espécies que Lineu enfiou no saco dos Polypodium, só 13 se mantiveram lá até hoje.

Filix-femina significa literalmente "feto-fêmea"; na próxima semana iremos conhecer o feto-macho que Lineu idealizou para completar o casal. Um casamento perfeitamente platónico e estéril, baseado numa diferenciação sexual que o próprio Lineu reconheceria como fantasiosa. Mas — diriam os seus detractores — o homem só pensava nessas poucas-vergonhas. Os dois fetos (macho e fêmea) fazem alguma vida em comum, por preferirem ambos habitats húmidos e sombrios; e, sendo os dois de grande tamanho (com frondes que podem ultrapassar 1 m de comprimento), a fêmea tem uma folhagem de textura mais delicada, com um recorte mais mimoso e enfeitado.

O Athyrium filix-femina é um verdadeiro caso de expansão global sem a ajuda de exércitos ou das novas tecnologias: é nativo em quase todo o hemisfério norte e, nas Américas, ainda dá uma saltadinha até ao sul. Em Portugal, e sobretudo na metade norte do país, é frequente encontrá-lo à beira-rio e noutros locais com humidade permanente.

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