18/07/2011

Senhora Dabney

Veronica dabneyi Hochst.

Ventos cruzados, passageiros em terra. Porém, em vez de uma espera frustrante, o dia extra nas Flores trouxe-me as flores que faltavam. Com uma pista que dá à justa para os aviões travarem, o aeroporto de Santa Cruz depende das boas graças do vento: se soprar com moderação do norte ou do sul, basta o avião deixar-se embalar por ele; se for transversal à pista ou dado a assomos de violência, não há avião que aterre ou que descole. Escolhendo bem a época do ano, podemos passar uma semana na ilha pagando apenas a primeira noite: o resto é por conta da SATA.

Três dias antes tinham-me mostrado, num talude verdejante à margem de uma estrada, onde talvez esteja a salvo da voracidade dos coelhos que infestam a ilha, uma boa população de Veronica dabneyi. A emoção de encontrar bem viva no seu habitat uma planta endémica açoriana que chegou a ser dada como extinta na natureza foi algo diminuída por ela não me querer mostrar as flores. As hastes estavam já empertigadas e com os botões formados, mas a abertura oficial seria só daí a uns dias. E foi my friend the wind (apetece cantar com Demis Roussos) que, paralisando os aviões, me concedeu um prolongamento da estadia e tornou possível a segunda visita ao talude. Essa sim com flores.

A Veronica dabneyi, que pode atingir os 30 cm de altura, parece uma versão mais robusta, algo lenhosa na base, da herbácea Veronica officinalis, que é presença habitual nos nossos bosques nortenhos: ambas têm o caule mais ou menos inclinado, folhas opostas com margens serradas, e espigas florais que emergem das axilas das folhas. Contudo, as folhas e os cálices das flores da V. dabneyi são glabros e lustrosos, enquanto que a V. officinalis é toda ela peluda e baça.

No que as duas plantas claramente divergem é no contingente populacional. Desde que foi descrita pelo botânico alemão Christian Ferdinand Friedrich Hochstetter (1787–1863), aquando da sua demorada visita à ilha do Faial, em 1838, a Veronica dabneyi raramente foi observada na natureza. Durante todo o século XX só se publicou registo de uma observação: ocorreu na Caldeira do Faial, em 1938, e depois disso a planta não voltou a ser vista na ilha. A redescoberta, feita por José C. Pereira, da Secretaria Regional do Ambiente dos Açores, seria (conforme se conta neste artigo) já noutra ilha e quase noutro século: nas Flores, em 1999, numa berma de estrada; provavelmente a mesma estrada que revisitei em 2011. Em 2000, Hanno Schäfer encontraria mais populações da planta nas Flores, e no ano seguinte foi também confirmada a sua existência no Corvo. As duas pequenas ilhas do grupo ocidental do arquipélago são, ao que tudo indica, o último reduto da ressurrecta espécie.

Dabney era o nome da família norte-americana que se estabeleceu no Faial em 1806 e ficaria na ilha até 1892. Dois dos seus membros — o patriarca John Bass Dabney e o seu filho Charles William Dabney — foram cônsules dos EUA na cidade da Horta; por altura da visita de Hochstetter corria o reinado do segundo. Entre as muitas senhoras da família, nenhuma se chamou Verónica. Contudo, uma delas, Frances Dabney, nascida no Faial em 1856, e que por lá viveu até se mudar para Boston aos 18 anos de idade, escreveu no exílio americano, em 1903, um livro de poesia (em inglês) com o título Saudades — assim mesmo, em português. Saudades de uma ilha de onde se ausentou para sempre; como se ausentaria, décadas mais tarde, aquela delicada planta indígena que os Dabney chegaram a cultivar no jardim, e a que o visitante alemão, supõe-se que grato pela hospitalidade, chamou Veronica dabneyi.

2 comentários :

ZG disse...

Fantástico post!!!

Luz disse...

Lindo!!! Obrigado!