28/01/2011

Saramago rosa



Raphanus raphanistrum L.

Os pescadores eméritos da terra gabavam-se de ter os seus próprios métodos, as suas estratégias, as suas artes mágicas, que geralmente duravam uma temporada para logo darem lugar a outros métodos, a outras estratégias, a outras mágicas artes sempre mais eficazes que as anteriores. Nunca cheguei a beneficiar de nenhuma delas. A última de que me lembro foi um famoso pó-de-roseira (a dúvida que então tinha, e até hoje, era saber que parte da roseira seria a que os entendidos pulverizavam: quero acreditar que fosse a flor), graças ao qual, previamente lançado à água como uma espécie de engodo poético, os peixes caíam, perdoe-se a incorrecta comparação, como tordos. O pobre de mim jamais pôde tocar com os seus indignos dedos aquele ouro em pó. E essa terá sido, certamente, a causa do desaire que sofri perante o maior (ainda que para todo o sempre invisível) barbo da história piscícola do Tejo. Contarei com palavras simples o lamentável acontecimento. Tinha eu ido com os meus petrechos a pescar na foz do Almonda, chamávamos-lhe a «boca do rio», onde por uma estreita língua de areia se passava nessa época ao Tejo, e ali estava, já o dia fazia as suas despedidas, sem que a bóia de cortiça tivesse dado sinal de qualquer movimento subaquático, quando, de repente, sem ter passado antes por aquele tremor excitante que denuncia os tenteios do peixe mordiscando o isco, mergulhou de uma só vez nas profundas, quase me arrancando a cana das mãos. Puxei, fui puxado, mas a luta não durou muito. A linha estaria mal atada ou apodrecida, com um esticão violento o peixe levou tudo atrás, anzol, bóia e chumbada. Imagine-se agora o meu desespero. Ali, à beira do fundão onde o malvado devia estar escondido, a olhar a água novamente tranquila, com a cana inútil e ridícula nas mãos, e sem saber o que fazer. Foi então que me ocorreu a ideia mais absurda da minha vida: correr a casa, armar outra vez a cana de pesca e regressar para ajustar contas definitivas com o monstro. Ora, a casa dos meus avós ficava a mais de um quilómetro do lugar onde me encontrava, e era preciso ser pateta de todo (ou ingénuo, simplesmente) para ter a disparatada esperança de que o barbo iria ficar ali à espera, entretendo-se a digerir não só o isco mas também o anzol e o chumbo, e já agora a bóia, enquanto a nova pitança não chegava. Pois apesar disso, contra razão e bom senso, disparei a correr pela margem do rio fora, atravessei olivais e restolhos para atalhar caminho, irrompi esbaforido pela casa dentro, contei à minha avó o sucedido enquanto ia preparando a cana, e ela perguntou-me se eu achava que o peixe ainda lá estava, mas eu não a ouvi, não a queria ouvir, não a podia ouvir. Voltei ao sítio, já o Sol se pusera, lancei o anzol e esperei. Não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci.

José Saramago, As Pequenas Memórias (Caminho, 2006)

2 comentários :

Anónimo disse...

Muito interessante este blog, parabéns.

Anónimo disse...

Saramago
em cores
tal como é, planta e nome de pessoa, de grande memória!
Abçs da bettips
Obg