14/01/2011

Nos primeiros dias do mundo, à sombra de uma árvore


Lagoa de Carregal (Ribeira, Galiza)

Minhas Senhoras e meus Senhores:

Direcção Única são as duas palavras postas ao lado uma da outra para indicar o único caminho por onde deve seguir toda a gente. E, para que não haja confusões possíveis, encontramos pelas esquinas e encruzilhadas uns discos pintados de encarnado, servindo de fundo e chamariz a umas letras brancas que dizem claramente, para quem quer que seja, e até para os cegos e para os analfabetos: direcção proibida.
Ora, as direcções proibidas não nos interessam absolutamente nada. Não quer isto dizer que vamos desprezar esses discos das direcções proibidas e desobedecer às suas ordens dadas tão visível e intimativamente para todos sem excepção. Não senhor, não é nada disso. Pelo contrário: até lhes agradecemos de todo o coração a esses avisos tão bem postos aí nos seus lugares, que ninguém pode vir depois com desculpas de não ter sido avisado a tempo. A nós não nos interessam as direcções proibidas pela simples razão de que só nos importa a direcção única. Temos todo o nosso tempo muito certinho muito bem contado, e é o justo para podermos seguir em linha recta pela direcção única. Se nos enganássemos e fôssemos por qualquer descuido ou capricho nosso por alguma das muitíssimas direcções proibidas que nos aparecem a cada passo, a cada esquina, a cada momento, em todas as encruzilhadas, arriscávamo-nos a não chegar a horas ao fim da nossa viagem, que é como quem diz, ao fim destas linhas que V. Ex.as tão amáveis, estão escutando com tanta atenção. (...)
Entregou Deus ao Homem o nosso planeta inteirinho, com todas as suas maravilhas, com todo o esplendor de todas as suas múltiplas fortunas, e ao confiar-lhe desta maneira todas as riquezas da terra, disse-lhe:
— Toma para ti, tudo isto tem uma direcção única.
E levou ao máximo a sua lealdade de Deus para com o Homem, avisando-o como bom e verdadeiro amigo, de que havia também direcções proibidas e, por conseguinte, que tivesse muito cuidadinho com elas. Mas contemos exactamente como as coisas se passaram.
Comecemos exactamente pelo princípio. Pois ao princípio não havia nada. Mas mesmo o que se chama nada. E sete dias depois já estava feito tudo. Mas mesmo o que se chama tudo. E tudo isto que levou sete dias a fazer foi tudo feito expressamente para uma pessoa só. Foi esta, minhas senhoras e meus senhores, a primeira vez que uma pessoa se viu sozinha neste mundo. Era um homem. Um pobre homem. Fazia dó vê-lo ali sozinho, metido no meio de todas as riquezas do mundo. Tudo aquilo só para ele e para mais ninguém. Pois se havia só ele em todo o mundo! Há-de haver muita gente a quem faça inveja uma situação tão desafogada como esta, contudo foi esta a primeira desgraça humana que houve no Mundo. Todas as riquezas da Terra não eram o bastante para que ele não caísse na tristeza do isolamento, na angústia da solidão, nesse inferno–verdadeiro ao ar livre. Mas Deus reparou logo nessa sua falta e emendou a mão. (...)
E já estamos no dia oito do mundo. E quando em todo o mundo não há senão duas pessoas, e que estas são precisamente um homem e uma mulher, não há perigo de haver engano: foram feitos um para o outro. Mas Deus, que vê muito mais longe que as pessoas, não havia maneira de se esquecer daquele horroroso espectáculo que oferece uma pessoa quando está sozinha neste mundo, e então tomou as suas precauções para que aquilo não se tornasse a repetir. E fez então a mulher para que fossem duas pessoas e uma única combinação entre elas. (...) Foi esta a condição que Deus pôs a todos os que entrassem no Paraíso Terrestre para gozarem todas as riquezas da Terra: que viessem aos pares, que fossem sempre juntinhos os dois, como os pombinhos, como as cegonhas, como os elefantes, como os cavalos, como os burros, ambos ao mesmo tempo por toda a parte, sem ter cada um nada que pensar em si-próprio, sendo-lhes apenas consentido pensarem nos dois ao mesmo tempo. Numa palavra: a direcção única. A direcção única era os dois ao mesmo tempo. E as direcções proibidas cada um para seu lado. (...)
Pois este par andou por toda a terra, pelas cinco partes do mundo, o qual por esse tempo era todo conhecido e não tinha ainda nenhum pedaço por descobrir; conheceu e gozou todas as maravilhas, todas as fortunas, todas as riquezas, todas as infinitas felicidades que Deus deitou ao Mundo, até que um dia, dia maldito na História do nosso planeta, depois de já terem feito o que lhes estava permitido fazer, já não tinham mais novidades do que aquelas que eram as proibidas. Oh curiosidade! Oh apetite! E claro está também fizeram o que era proibido. Dizem que foi ela quem começou, mas fosse qual fosse, isso é secundário, o importante é que acabaram os dois. E então foi o diabo! Desde esse momento escangalhou-se tudo. Tudo! E foi-se por água abaixo a primeira colaboração que se fazia no mundo. Cada um para seu lado, cada um no seu isolamento, cada qual na sua solidão. Exactamente como se em vez de um houvesse dois mundos iguais e uma pessoa só para cada mundo. (...) Desde esse mesmo instante todas as coisas deste mundo perderam o seu único sentido e ficaram com vários, um único bom e todos os outros maus, dificílimo de distinguir os maus do bom, parecidíssimos todos, uma trapalhada. (...)
Pedimos a V. Ex.as a fineza de repararem em que a História da Humanidade começa exactamente por um fracasso, o fracasso da primeira colaboração entre pessoas.

Lisboa, Abril 1932.
José de Almada Negreiros

1 comentário :

Luz disse...

Belíssimo texto, belíssimo pensamento, ou não fosse ele do grande Almada negreiros!
Bom fim de semana
Luz