31/03/2005

Peça em um acto

A conversa decorre no gabinete do Vereador, situado no quinto andar da Câmara Municipal. A decoração da sala é asséptica e impessoal: estantes lisas onde se alinham pastas de arquivo e volumes encadernados, cadeiras metálicas com forro preto, duas serigrafias com motivos abstractos encaixilhadas a negro sobre o fundo branco da parede. Das amplas janelas avistam-se os altos prédios circundantes. Sentado à secretária, o Vereador folheia o catálogo da firma Soluções Verdes; à sua frente, o Empresário vasculha uma pasta de cabedal.

Vereador: «Muito interessante, a gama de produtos da sua empresa. Vem mesmo a calhar. A cidade há muito que pôs em marcha um ambicioso programa de requalificação urbana para se modernizar e reforçar a sua auto-estima. Não podíamos continuar agarrados a um conceito atávico de espaço público, indigno de uma cidade verdadeiramente europeia. Queremos espaços arejados, limpos e amplos, traçados com esquadria rigorosa... Mas porquê o nome Soluções Verdes?»

Empresário: «De facto, os nossos produtos têm vindo a diversificar-se, e o nome da empresa, Soluções Verdes SA, já não será o mais ajustado. Preocupamo-nos sempre em alargar o nosso leque de soluções, adaptando-o às exigências do mercado, e ainda bem que esse esforço é reconhecido. Não abandonámos o verde, que continua a vender bem, sobretudo com as árvores-de-Natal (que comercializamos em três tamanhos, com ou sem enfeites) e as alcatifas para cobrir terraços de prédios (que são importantes para assegurar as manchas verdes em imagens aéreas da cidade). Mas a verdade é que agora há outras cores com muito mais saída, como o sizento e o preto. O que de todo deixou de ter procura, como o senhor Vereador muito bem sabe, foram as cores vivas: vermelho, amarelo, azul, rosa, etc. Até acabámos com o fabrico de flores artificiais, e isso entristeceu-nos porque esse foi o nosso primeiro negócio. Que ninguém quisesse flores de verdade, entendia-se, por causa daqueles senhores arquitectos a troçar dos canteiros e canteirinhos, mas não foi correcto desprezarem também as nossas flores, muito mais bonitas e resistentes. No fim já só se vendiam para cemitérios.»

Vereador: «Águas passadas, amigo, águas passadas. A guerra das flores já lá vai, e agora a cidade, felizmente, já não tem que se envergonhar desses efeitos decorativos fáceis que repugnavam às sensibilidades mais apuradas. Em boa hora optámos pelo sizentismo nos nossos espaços públicos. A sua empresa soube adaptar-se à mudança dos tempos, e é para a frente que se deve olhar. Esta sua árvore de granito, por exemplo, é uma excelente base de trabalho para o novo perfil da Avenida, e só é pena que seja redonda. Não fabricam outros modelos? Preferia um mais geométrico e anguloso, com as arestas bem vincadas.»

Empresário: «Gostou, foi? É coisa de um nosso recém-colaborador, rapaz cheio de talento. É como inventar a roda: agora parece muito natural, mas foi preciso alguém ter a ideia. Esta árvore de pedra tem todas as qualidades da árvore viva e nenhum dos seus defeitos. É resistente ao vandalismo e facílima de transplantar. E nem calcula o que a sua Câmara vai poupar só em podas e limpezas. Este modelo (Araucaria petrea) ainda é inspirado numa árvore de verdade, porque alguns municípios do interior, nossos clientes, mantêm o saudosismo das velhas formas. Mas veja aí no catálogo como temos modelos de linhas mais modernas, ideais para uma cidade progressista como esta.»

Vereador: «Estou a ver... Sim senhor, muito bem. Gosto especialmente desta árvore com os quatros ramos em ângulo recto. E diga-me: a iluminação está incluída no preço?»

3 comentários :

Unknown disse...

Que pena a peça vir tão portuensemente marcada, pois seria um óptimo "sketch" numa das noites da associação onde ocupo os meus tempos livres.
É permitida uma adaptação local?

Paulo Araújo disse...

Com certeza, faça as mudanças que achar necessárias, que eu até lhe fico muito agradecido. Como isto é "teatro de intervenção", a integridade artística deve ser sacrificada à eficácia da mensagem...

Anónimo disse...

Bravo. Não haverá tanta ficção como se poderá pensar. Abraço. Octávio Lima (ondas2.blogs.sapo.pt)