24/10/2004

"Por uma tarde fosca de Outubro..."

«(...) Também ali perto, por uma tarde fosca de Outubro, chegou um gaio, voejando de chaparro em chaparro, a grasnar mal-humorado como é próprio da raça. No saiote desbotado, as duas pinceladas de azul, azul retinto, fulguravam para que se soubesse que um gaio também é gente dos ares. Trazia no bico uma bolota, um pouco menor que o bolo que o corvo costumava levar à cova de Daniel, mas para ele mais importante. Dispunha-se a comer a merenda bem amargada, quando deu com os olhos no mariolado vizinho com quem bulhara uma Primavera inteira por causa da gaia, depois sua mulher. Já esse tal, rancoroso e mau, dava jeitos de querer investir, penas riças, garras desembainhadas, a asa possuída de frenesim. Que remédio senão preparar-se para o receber condignamente!
E deixou cair a glande. Esta foi bater na face zenital dum velho toro, saltou de ricochete para o lado, e aninhou-se muito aninhada num monte de folhas secas e argalhos. Ninguém a via, nem ela via a mais pequena nesga do mundo.
Os dois gaios, depois de trocarem muitos gritos de cólera e darem a sua bicada, mas sem que corresse sangue, despediram. O mais rela e pundonoroso pulou ao chão a procurar a sua rica bolota. Procurou, tornou a procurar pincharolando dum lado para o outro e introduzindo por toda a parte, taladas e covilhas, o olho finório e matuto, mas nada descobriu. Soltou duas ou três vezes a sua voz ralhada a conjurar os deuses daquele desaforo, perdeu a paciência. E saraivando, batendo a asa, ainda meio atrida da rixa, lá foi para outro carvalhal onde havia que pilhar.
A bolota taluda ficara ali muito quieta, muito bem refastelada em virtude do próprio peso, enterrada que nem pelouro de batalha depois de passarem carros e carretas. Que fazer senão deitar-se a dormir?! Dormiu uma hora ou uma vida inteira, quem o sabe?! Um laparoto veio lá de cascos de rolha, rapou a terra, fez um toural, aliviou-se, e ela ficou por baixo, sufocada sem poder respirar, em plena escuridão. Estava no fim do fim?
Um belisco, e do seu flanco saiu como uma flecha. Era de luz ou de vida? Era uma fonte ou antes um cântico de ave, de água corrente, de vagem a estalar com o sol, dum insecto na sua primeira manhã, música trilada da terra ou das esferas? Era tudo isto, encarnado no fogo incomburente que lhe lavrava no flanco, verbo que acabou por irradiar do próprio mistério do seu ser.(...)
Ora, certa manhã de Outono... »


Aquilino Ribeiro -A casa grande de Romarigães: crónica romanceada (1957). Lisboa : Bertrand, cop. 1985
Anterior: O nascer do Sol

1 comentário :

Anónimo disse...

Uma maravilha este texto!
Alguém