05/12/2017

Saponária dos assobios


Saponaria ocymoides L.


A grande vantagem de planearmos os passeios ao milímetro é podermo-nos desviar vários quilómetros da rota traçada. Se o improviso correr mal, se aquele desvio que por impulso fazemos afinal não se revelar compensador, podemos sempre retroceder e conformarmo-nos com o que estava previsto. O planeado é apenas a rede de segurança, um último recurso para que o passeio valha a pena. Mesmo nesta época dos satélites, do Google Earth e do GPS, os caminhos só se conhecem caminhando, e muitos vezes, quando pisamos o local que antevíramos nas imagens aéreas, percebemos que o melhor de dois caminhos é aquele que não tínhamos mapeado.

Em Maio, na nossa semana de vagabundagem pela cordilheira cantábrica, quisemos visitar a cascata de Las Pisas, em Soncillo, na província de Burgos. O trilho até lá, embrenhando-se por um bosque cerrado, era difícil de adivinhar pelas imagens aéreas, mas pareceu-nos que partiria de Villabascónes, um povoado com cinco ou seis casas convertido ao turismo de habitação. Erro nosso, como poderíamos ter verificado pelo mapa geográfico de Espanha (disponível aqui). Seguimos teimosamente o caminho errado, esperando que ele, dando-se conta do equívoco, guinasse à esquerda e se dirigisse para a cascata. Quando compreendemos que nunca chegaríamos a ela, já tínhamos sido seduzidos pelo ribeiro (arroyo Saúl, informa o mapa) que o caminho insistia em acompanhar, e tornara-se-nos tão impossível retroceder como a um marinheiro arrastado pelo canto da sereia. Havia faias, freixos, amieiros e... tílias, uma novidade para quem, como nós, só as conhecia domesticadas em jardins. Ervas-pombinhas (Aquilegia vulgaris) e madressilvas (Lonicera sp.) acrescentavam azul e amarelo à exuberância do verde; e, nos pontos onde o caminho se afastava do leito encaixado do ribeiro, deu-se o nosso feliz reencontro com o raríssimo (em Portugal) Aphyllanthes monspeliensis, que se empoleirava nos taludes soalheiros.

A certa altura o caminho cruzava um viaduto e desembocava numa estrada, seguindo o exemplo do ribeiro que, no mesmo ponto, desaguava num rio de caudal já respeitável (rio Nela, afluente do Ebro). Quebrara-se o feitiço e já podíamos inverter a marcha. Logo antes do viaduto, atrás do portão de uma casa decrépita, um cão triste ladrava para justificar a existência. Fingindo ir embora, esperámos que ele se calasse para ir, em bicos de pés, fotografar uma planta de flores cor-de-rosa, parecida com um assobio (assim chamamos nós às Silenes), que crescia num muro.

Dar nome à suposta Silene revelou-se intrincado, e o problema só se resolveu quando concluímos que não se tratava de uma Silene. Se fôssemos botânicos conscienciosos (mas nem botânicos somos), uma inspecção à lupa revelaria que a planta tinha apenas dois estigmas em cada flor, enquanto que as do género Silene têm três (ou raramente cinco) — fotos aqui e aqui. Sendo nós irremediavelmente descuidados, acabámos por nem registar esse detalhe crucial nas fotos. Como iríamos adivinhar estar em presença de uma prima da Saponaria officinalis? Uma planta peluda, de múltiplos caules decumbentes, agarrada a um muro, de flores diminutas: eis um retrato em tudo contrastante com o da erva-saboeira, que é glabra, tem caules erectos, flores e folhas grandes, e cresce em terrenos húmidos.

Em Espanha ocorrem cinco espécies de Saponaria, quatro delas ausentes de Portugal. Vendo-lhes as caras (espreite ao fundo desta página), concluímos que a Saponaria ocymoides, acima ilustrada, se integra bem no conjunto, e que quem mais destoa é a S. officinalis. A S. ocymoides ocorre em grande parte da Europa mediterrânica, desde os Balcãs até Espanha. É uma planta perene de 30 a 50 cm de altura, de base lenhosa nos exemplares mais idosos, que por vezes se apresenta com os caules muito emaranhados. O epíteto ocymoides refere-se à (hipotética) semelhança da planta com o manjericão (Ocimum basilicum).

1 comentário :

bea disse...

Sem dúvida, há acasos e impulsos felizes.