19/05/2015

Rio obeso


Chamaesyce canescens (L.) Prokh. subsp. canescens [= Euphorbia chamaesyce L.]


Deslizando pela IC5 entre Alfândega da Fé e Mougadouro, os montes parecem-nos agora mais atarracados e os vales menos profundos, efeito do rio Sabor que começou a inchar doentiamente quando no final de 2014 as comportas da barragem foram fechadas. A alteração brutal da paisagem, o afogamento do vale, o arranque de centenas de milhares de árvores e o desaparecimento de habitats mediterrânicos únicos não podem ser descritos como melhorias, nem (santa ingenuidade!) como o preço a pagar por finalmente haver água à farta numa região onde ela costumava ser escassa. A água que ali está represada serve apenas para produzir energia eléctrica: nunca chegará à torneira de ninguém nem irá regar campos ou pomares ressequidos. Passada a euforia da construção, em que algumas centenas de operários poderão ter animado a economia local, o Nordeste Transmontano não tirará qualquer benefício desta forma destrutiva de progresso. Muito pelo contrário: albufeiras obesas e eutrofizadas há muitas pelo país fora; rios como o Sabor só havia um. Aqueles que procuram lugares genuínos e bem preservados terão menos motivos para visitar Trás-os-Montes. E, como quem espeta mais um prego no caixão, a mesma tragédia com os mesmos protagonistas prossegue inexorável no também transmontano vale do Tua.

Face ao corte de zimbros e azinheiras, à obliteração das mais importantes populações portugueses de buxo silvestre, e ao desaparecimento de herbáceas raras como a Mentha cervina e a Bufonia macropetala, a perda por afogamento da planta que hoje ocupa o escaparate talvez não justifique muitas lágrimas. Pende sobre ela a suspeita antiga (reproduzida na Flora Ibérica) de não ser europeia de puro sangue, mas antes um «arqueófito» originário da Anatólia e do Irão. Como quase todas as suas congéneres, algumas delas (como a C. serpens e a C. maculata) frequentadoras de fendas de calçadas urbanas, a Chamaesyce canescens prefere solos pisoteados, no seu caso com um certo grau de humidade — lamacentos é talvez a palavra certa. O leito de cheia de um rio como o Sabor é, por comparação, um lugar de prestígio onde ela, longe de prever que um lago desabaria sobre a sua cabeça, teve a ousadia e a imprudência de se instalar.

A suspeita de que a C. canescens tenha origem exótica não foi ainda confirmada e talvez nunca venha a sê-lo, fazendo lembrar aqueles processos judiciais que se arrastam anos a fio até que prescrevam sem serem levados a julgamento. Nessa altura o arguido declara que foi reconhecida a sua inocência, mas o público em geral fica a pensar outra coisa. Contudo, se a C. canescens for mesmo nativa do nosso território, como é bem possível que seja, então a sua presença por cá tornou-se tão esporádica (quatro registos apenas no portal Flora On) que, se tal publicação existisse, a espécie teria lugar garantido no Livro Vermelho da Flora Vascular Portuguesa.

O género Chamaesyce aparenta estar bem caracterizado morfologicamente: são ervas rasteiras, anuais, de folhas assimétricas na base, com inflorescências como as das eufórbias, mas axilares em vez de terminais e sem ramificação dicotómica. Contudo, estudos genéticos recentes vieram questionar a sua independência, optando agora muitos autores por incluí-lo no género Euphorbia. Um verdadeiro regresso ao passado, pois Lineu, o pai da taxonomia moderna, baptizou esta planta em 1753 no seu Species Plantarum como Euphorbia chamaesyce.

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