04/10/2014

Estrelas de haver


Nave de Haver
Cerca de oito quilómetros a sul de Vilar Formoso, Nave de Haver é um recanto no interior do país estranhamente plano e arenoso, não longe da ribeira de Tourões que desagua ali perto no rio Águeda. O espanto acentua-se quando avistamos uns morros cor de argila, umas formas de aluvião que parecem ter sido desenhadas por chuva intensa. O topónimo soa-nos bizarro até entendermos que nave significa, neste contexto, um lugar plano entre montanhas e que o de Haver é decerto uma variante oral de Daver, que alude a uma várzea junto a um rio. Cruzamo-nos com algum gado e cães de guarda que ladram enervados por ver gente: actualmente não moram no lugar mais do que 400 pessoas. Diz-se que por lá prossegue a exploração de volfrâmio por processo artesanal e que, estando tão perto de Espanha e sendo tão despovoado, é ainda propício ao contrabando.

É para a zona ondulada, e as famosas arcoses, que nos dirigimos em Maio. Mas a planície junto à estrada está arroxeada por tantas flores de Linaria incarnata e há lá tantas plantas que nunca vimos que a viagem se vai alongando em paragens. Quando chegamos finalmente aos arenitos, encontramos uma duna gigante feita de cascalho grosseiro e escorregadio, um enorme rochedo desfeito e depois sedimentado onde se notam veios de quartzo, xisto, granito e argila. E tudo o resto parece ter encolhido, até os carvalhos, como se ali o mundo fosse ainda jovem. No fundo dos aluviões há regatos estreitos e, dispersas, lagoas pouco fundas de margens recheadas de plantas preciosas e outras que não identificámos.


Quercus pyrenaica Willd.
No início de Setembro retornámos, desta vez para explorar essas "dunas" solidificadas, e aí ver uma pequena população desta asterácea rara que Miguel Porto e Ana Júlia Pereira encontraram meses antes e para a qual nos haviam alertado.


Aster aragonensis Asso


Como floresce no Verão, quando quase tudo o resto já perdeu a cor, pensámos que não teríamos dificuldade em avistá-la, mas é planta tão delgada, de inflorescências em corimbo tão frouxo e, quando a vimos, de folhas secas e hastes de cor tão próxima da do solo, que quase nos passou despercebida. (Curiosamente, Brotero designou-a Aster fugax, aludindo desse modo à maturação rápida da planta.) Foram as lígulas violáceas, que contrastam com o amarelo das pétalas num arranjo admirável, que nos ajudaram a descobri-la. A estrela miúda, como a designam em castelhano, é um endemismo ibérico de que em Portugal só se conhecem núcleos nos arenitos de Nave de Haver, em afloramentos ultrabásicos, xistos verdes e leitos de cheia de Bragança e Vinhais, em fendas de rocha xistosa na serra do Açor e num urzal na Serra da Carregueira. Na Catalunha, consta do Livro Vermelho (das plantas endémicas ameaçadas) como espécie vulnerável.

Lemos que Ignacio Jordán de Asso y del Rio (1742-1814), naturalista espanhol que nomeou esta planta, foi autor de um inventário quase exaustivo da flora e fauna de Aragão.

3 comentários :

bea disse...

Nave de Haver é um lugar que penso visitar. E vou ter atenção à paisagem.

Gostei de saber a possível história do nome que sempre me intrigou.

Obrigada e BFS

ZG disse...

Muito interessante! Vale a pena conhecer a região, certamente!...

Carlos M. Silva disse...

A vossa saga de detectives (mesmo que antecedida por outros) não pára de surpreender por descoberta de nichos estranhos nos quais a mão do Homem também teve relevo.
Cada recanto que vós encontram parece prometer - e promete, e dá - um país que quase todos nós desconhece.
E se já visitei, aí próximo, o Águeda, foi apenas o rio, pelo lado espanhol e apenas pela espantosa paisagem. Mas como o ZG atrás indica ..há pelos vistos outras coisas para encontrar.
Obrigado.
Carlos