16/09/2014

A prima da América


Cinzas do vulcão dos Capelinhos
Quem visitar os Açores numa corrida contra-relógio, por ter comprado um daqueles pacotes turísticos de cinco-ilhas-sete-noites, tem de ser criterioso na escolha do que vai visitar em cada ilha. No Faial há-de querer espreitar a grande cratera, visitar a baía da Horta e, num salto à outra ponta da ilha, admirar o negrume lunar do vulcão dos Capelinhos, ou do que resta dele. Sem desfazer dos méritos dessa escolha, propomos-lhe um programa alternativo, que tem a vantagem de servir mesmo para aqueles dias (que são quase todos) em que o nevoeiro e a chuva tornam a paisagem do interior da ilha em coisa que só existe na imaginação. Se insistir em visitar os Capelinhos, saiba que só poderá subir ao farol pagando os 10 euros da entrada no centro de interpretação, que por esse preço há-de querer não apenas contar-lhe tudo sobre o vulcão que celebrizou o local mas fazer de si um verdadeiro perito em vulcanologia. Se não está interessado na lição ou não tem tempo para ela, fique-se — e já não é pouco — com a imagem do farol contra as falésias cor de carvão, despidas por enquanto mas com a vegetação pioneira de tamarizes, faias, urzes e algumas herbáceas a posicionar-se para uma conquista que levará séculos.

Se tivéssemos apenas um dia para visitar o Faial, um dia que condensasse o melhor e o mais proveitoso dos seis dias muito bem preenchidos que lá passámos, então os dois lugares obrigatórios seriam a cidade da Horta (incluindo a praia de Porto Pim) e o Jardim Botânico do Faial. A seguir a Angra de Heroísmo, a Horta é a cidade mais bonita dos Açores, comovente pelos seus aristocráticos sonhos de frustradas grandezas, com grandes armazéns que são só fachada e avenidas amplas que terminam logo depois de começarem. É no Porto Pim, uma baía resguardada por uma península e um monte que é também um vulcão adormecido, que se encontra uma das duas praias do Faial, se por praia entendermos um areal à beira-mar. O monte que se ergue logo atrás é hoje, graças à erosão dos milénios, quase todo formado por areia, e essa crista dunar é nos Açores um habitat raríssimo, permitindo que lá se instalem plantas que quase não existem no resto do arquipélago. Uma delas, que nos Açores só ocorre no Porto Pim e algures na Terceira, é o narciso-das-areias (Pancratium maritimum), tão comum nas praias do continente. Outra raridade é a grafonola, e uma terceira é a Cakile edentula, que hoje ocupa o escaparate.

Foi no Jardim Botânico do Faial que travámos conhecimento com estas últimas plantas, dois dias antes de as reencontrarmos no Porto Pim. Este é o melhor jardim botânico português da actualidade, por ter assumido plenamente que a sua função é estudar, proteger e divulgar a flora da região em que se insere, em vez de reunir uma colecção arbitrária de espécies exóticas. É uma missão educativa do mais alto valor, pois a genuína flora dos Açores, tão obliterada pela omnipresença de pastagens, hortênsias e criptomérias, permanece invisível aos olhos de quase todos os visitantes. Quem percorra os canteiros do jardim, seja qual for a altura do ano, há-de encantar-se com os maciços cor-de-rosa da Scabiosa nitens, um dos mais bonitos e esquivos endemismos açorianos. Árvores, arbustos e herbáceas dispõem-se ordenadamente em recantos que recriam habitats naturais desde as florestas húmidas de altitude até às zonas costeiras. É aí que regressamos a Porto Pim, pois uma pequena duna artifical em local soalheiro alberga amostras das especialidades dessa praia.


Cakile edentula (Bigel.) Hook.


A Cakile edentula não é muito diferente da sua congénere Cakile maritima, que encontramos em toda a costa portuguesa do Minho ao Algarve. Além de terem as mesmas preferências de habitat, ambas são plantas anuais, glabras, de folhas suculentas, com porte prostrado ou ascendente, que raro ultrapassam os 50 cm de altura. Diferenciam-se pelas flores (as da C. edentula são menores), pelo formato dos frutos, e sobretudo pelas folhas. O epíteto edentula, que significa desdentado em latim, alude precisamente às folhas de margens quase inteiras, em contraste com as folhas muito recortadas da C. maritima.

A C. maritima, que é uma espécie europeia, não ocorre nos Açores; a sua substituta C. edentula distribui-se pela América do Norte e pela Islândia e é tida por vários autores como exótica no arquipélago. À luz dos critérios que expusémos na semana passada, esse veredicto parece-nos mal fundamentado e injusto. De facto, a C. edentula é conhecida no Faial desde 1842 — ou seja, desde que se começou a estudar a flora das ilhas. O habitat que ocupa é aquele que por índole lhe convém, e não levanta qualquer suspeita de ter sido indevidamente alterado. Ao invés de boa parte das espécies que se naturalizaram nas últimas décadas, não se tem expandido no arquipélago, muito pelo contrário: fora do Porto Pim só existe na praia da Ribeira Grande, em São Miguel. Ao não ser reconhecida como nativa, havendo fortes probabilidades de o ser, há o risco de que não tenha a protecção que o seu grau de raridade no arquipélago claramente justifica.


Porto Pim visto da estrada do Monte da Guia

2 comentários :

bea disse...

Agradeço os vossos conhecimentos e a beleza das fotos. O paraíso só pode ter sido semelhante.

Fernanda Valente disse...

Tenho o prazer de lhes deixar aqui o link de uma matéria que fiz já há algum tempo, sobre o vulcão dos Capelinhos:

http://fernandavalente.weebly.com/vulcatildeo-dos-capelinhos.html

Cordiais cumprimentos
Fernanda Almeida