21/04/2014

Bruco das lanças


Peucedanum lancifolium Hoffmanns. & Link


Tirando o breve período das férias de Verão, somos cada vez mais criaturas de espaços fechados. Só vemos o sol filtrado pelos vidros dos automóveis ou das janelas dos edifícios onde nos abrigamos. Habituámo-nos a viver sob iluminação artificial, e por isso é apropriado usar flash quando fotografamos pessoas: na sua instantaneidade, o relâmpago de luz concentra a essência postiça do habitat urbano que é o nosso. Já as plantas espontâneas, as que não foram domesticadas pelo comércio hortícola, ficam mal na fotografia quando tentamos compensar a luz natural com um disparo de flash. As cores ganham uma saturação postiça, há superfícies que parecem incrustadas de poalha fosforescente, as três dimensões do espaço reduzem-se a um plano achatado. A planta fica enquadrada no rectângulo da foto com um ar de espanto arregalado, como se um paparazzi a tivesse apanhado desprevenida. Sabendo de tudo isso, o fotógrafo de serviço admite haver ocasiões em que o uso da luz suplementar é imperativo. As plantas, ao contrário dos edifícios, raramente se quedam estáticas, e só é possível captar com nitidez certas minúcias morfológicas se usarmos grandes velocidades de obturação. Se a luz ambiente for fraca, isso obriga-nos a usar uma profundidade de campo curta e uma sensibilidade ISO elevada. Resultado: as fotos ficam granuladas e deixam fora de foco detalhes importantes. Assim, quando o valor informativo é prioritário face ao possível valor estético da foto, ou ao amor-próprio da planta retratada, não há que hesitar no uso do flash sempre que ele seja necessário. Mas, por uma questão de equilíbrio, e para ficarmos no arquivo com imagens que, embora menos nítidas, sejam mais realistas, não devemos deixar, na mesma ocasião, de registar algumas fotos da planta só com luz natural.

Sirva de exemplo a planta de hoje, encontrada num dia de Agosto, ao final da tarde, num bosque ribeirinho junto ao rio Coura. A hora e o local não eram os mais indicados para a sessão fotográfica, mas ainda assim ela fez-se. O contraste entre as fotos com ou sem a muleta do flash não podia ser mais elucidativo: estas têm um ar impressionista e difuso, aquelas exibem uma nitidez quase surrealista. Enquanto que umas nos dão uma imagem geral da planta, as outras debruçam-se intrusivamente nos detalhes da inflorescência. É como se, incapazes de reconhecer alguém à primeira vista, tivéssemos, para uma identificação segura, de lhe inspeccionar as orelhas à lupa.

Se a hora e local não eram os melhores para o fotógrafo, já a planta que lhe serviu de motivo estava no local que é seu por direito. O Peucedanum lancifolium, popularmente conhecido por bruco, é uma umbelífera vivaz que atinge 1,2 m de altura, de caule oco e aspecto esguio, moradora de lugares húmidos como bosques ribeirinhos e prados-juncais. As suas inflorescências, que surgem tardiamente, de Julho a Setembro, são formadas por um máximo de 12 raios com 10 a 35 mm de comprimento, rematados por umbélulas de 10 a 20 flores, cada uma delas com cerca de 2 mm de diâmetro. O epíteto lancifolium no nome científico refere-se aos folíolos em forma de lança em que as folhas (geralmente bipinadas) estão divididas. É uma daquelas plantas que, tendo a sua área de distribuição preferencial no noroeste da Península, deveriam por justiça ser exclusivamente ibéricas, mas há notícia de algumas (escassas) populações no extremo noroeste de França.

2 comentários :

bea disse...

Tão bonito este texto! Penso tanta vez que se as flores e as plantas falassem, enrubesciam de vergonha por serem assim escrutinadas. É que nem as flores descaradas como as dálias de riso aberto resistem à observação impiedosa da câmara.
Ignoram que as olhamos com amor, sem notar defeitos, que o vê-las mais de perto é apenas modo de ganhar-lhes mais afeição, como quem beija as unhas pequeninas, quase impossíveis de um bebé.
Boa semana

a.mar disse...

:)