27/05/2013

Bemposta no seu sossego



Na Nova Flora de Portugal, Amaral Franco designa-a Terra Quente e, no mapa que acompanha a obra, podemos vê-la como uma faixa estreita a acompanhar o rio Douro, desde a fronteira com Espanha, com uns meandros pelo interior do nordeste do país, a chamada Terra Fria. Ali o solo é predominantemente ácido, de xisto e granito, com pelo menos três excepções importantes: os afloramentos de calcário cristalino onde revemos parte da flora das serras de Aire e Candeeiros; as ilhas ultrabásicas onde uma mão-cheia de plantas singulares condizem com o carácter extraordinário desse torrão, algumas das quais só existem ali; e os veios de material calcário que permeiam as rochas e alimentam herbáceas raras de que vos daremos conta em breve. Não há outro lugar assim.

Aphyllanthes monspeliensis L.


Este junco-florido lembra um cravo, mas as pétalas não têm o ápice dentado e são azuis. Sem flores, dificilmente daríamos atenção à ramagem de escapos fininhos que parece um capim crescido. Em vez de folhas [o nome do género deriva do grego anthos (flor) + a (sem) + phyllon (folha)], enrolam-se nos talos umas bainhas de 3 a 10 cm de comprimento, verdes ou avermelhadas. Há quem diga que as flores se comem e são saborosas, mas a população que vimos em Bemposta não era suficientemente grande para que ousássemos estragar uma flor. É nativa do sudoeste da Europa (foi originalmente descrita a partir de exemplares em Montpellier) e norte de África; na Península Ibérica ocorre sobretudo na metade este; em Portugal, só se conhecem populações em sítios pedregosos expostos ao sol, de solo seco e arenoso, nas margens do percurso do rio Douro na Terra Quente.

Esta é uma herbácea perene, sustentada em grande parte do ano por um rizoma longo. Nas fotos observam-se mais alguns detalhes: as hastes estreitas, glabras, lisas e altas (até cerca de 60 cm); as flores, de corola assalveada e tépalas azuis com um veio mais escuro (podem ser brancas, mas não vimos nenhuma dessa cor), quase sempre solitárias no topo das hastes, protegidas por um invólucro de várias brácteas castanhas com textura de papel de embrulho; na imagem aumentada da flor podem ainda notar-se os seis estames com anteras azuis encostados às tépalas e a torre trífida com o estilete ao centro. No Outono, haverá sementes negras de pele rugosa.

Esta espécie, única do género Aphyllanthes, já esteve na família Liliaceae. Porém, é tão diferente desses primos que se duvidou de um tal parentesco e se criou uma família só para ela, a Aphyllanthaceae. Finalmente, a genética foi chamada a decidir a justeza de uma tal separação e, como resultado, a planta mudou-se para a família Asparagaceae. Tem mais de uma dezena de nomes vernáculos em espanhol ou catalão, mas por cá, não há registo oficial de nenhum. Contudo, quem vive na bacia do Douro fronteiriço certamente reparou nela. Teremos por isso de ouvir a senhora idosa que se cruzou connosco, em passo vagaroso apesar da chuva, com uma colheita generosa de flores ao colo.

1 comentário :

bea disse...

Florir azul é exótico, prende o olhar. Mas este junco com flor na ponta parece invenção de poetas. A natureza, se é ela que faz e desfaz, é capaz de um belo extraordinário. E, contudo, a meio metro, se vamos de nariz no ar, nada vemos.
Boa Semana