03/08/2009

Por terras do Alva

Em Agosto de 2008, estando este blogue em gozo de sabática, estreava nas salas nacionais um dos melhores filmes do ano. Pensando bem, por que não ser enfático? Afinal, não temos qualquer razão para acautelar a nossa inexistente reputação cinéfila. Recomecemos então. Em Agosto de 2008, estando nós em ano sabático, estreava nas salas nacionais o melhor filme português de sempre - que se afirmou igualmente, por larga margem, como o melhor filme do ano. Realizado por Miguel Gomes, Aquele Querido Mês de Agosto - assim se chamava o filme - tinha por assunto o mês das férias de Verão no interior de Portugal: o mês dos que regressam à sua terra para reencenar uma vida que ficou suspensa durante onze meses; dos emigrantes que falam francês com os filhos mas entre si trocam palavrões; dos bailes com música foleira; dos que nunca partiram; das procissões, dos namoricos, dos incêndios.

O filme passa-se naquele que é quase o centro geográfico de Portugal, e que as populações locais conhecem por Beira Serra ou Pinhal Interior: Vila Nova de Poiares, Góis, Arganil, Côja e mais umas quantas vilas e aldeias até Oliveira do Hospital. É uma paisagem sem a imponência da Serra da Estrela, que só começa um pouco mais a leste. Os eucaliptos e os pinheiros, pasto de colossais incêndios, acabaram com a floresta autóctone; as povoações foram desfiguradas por casas e prédios desatinados. É isto que a fita também mostra, acompanhado pela banda sonora de um pimba impenitente. Como é que com ingredientes destes se pode fazer um filme tão comovente?

O verdadeiro caso amoroso do filme, além do namorico inconsequente (que termina, como manda a tradição, a 31 de Agosto), é por uma velha amante que, maltratada por muitos, desgastada pelos anos e confundida por novas modas, perdeu todos os encantos que tinha. Como se não percebesse as mudanças na amada - ou, percebendo-as, como se elas não lhe parecessem assim tão graves -, quem a ama continua a frequentá-la com o carinho de sempre. O par que os dois apaixonados formam nada tem de ridículo: é grandioso e trágico. Sem disfarces nem efeitos de retórica, é este amor mal resolvido dos portugueses pelo seu devastado território que está no âmago do filme.


Ponte sobre o rio Alva, em Côja

Não é o Alva o único rio que aparece em Aquele Querido Mês de Agosto: o Ceira, também afluente do Mondego, é cenário para uma gigantesca concentração de motards, em Góis. Mas o Alva é o rio mais importante da região, ao ponto de ela dever chamar-se terras do Alva. É o agrupamento musical Estrelas do Alva que anima os bailes na segunda parte do filme; há por lá povoações com nomes como São Pedro de Alva, Barril de Alva e Vila Cova de Alva; e a ponte sobre o Alva, em Côja (foto acima), é uma das protagonistas centrais do filme.


Amieiro junto à ribeira da Mata, em Benfeita

A ribeira da Mata nasce na Mata da Margaraça e desagua na margem esquerda do Alva, muito perto da ponte de Côja. (O local da confluência é assinalado pelos arcos que, na primeira foto, se podem distinguir por trás das escadas.) Aqui vemo-la a atravessar Benfeita, uma aldeia de 100 habitantes onde foi construída uma praia fluvial, com um açude que transformou um troço da ribeira em piscina. Mais a jusante, um vigoroso amieiro (Alnus glutinosa) regala-se nas águas que o açude vai libertando.


Relva Velha vista da Mata da Margaraça

A Mata da Margaraça é a jóia da coroa da Paisagem Protegida da Serra do Açor. É também o local onde, no final de Aquele Querido Mês de Agosto, encontramos a equipa de produção envolvida numa discussão sobre os sons espúrios que, segundo o realizador, se ouviriam no filme (na opinião do técnico, pelo contrário, esses sons seriam perfeitamente legítimos e apropriados). Enquanto a disputa se desenrola, a câmara vai deambulando pelo arvoredo e um microfone de braço comprido vai captando sons. Ouvem-se pássaros e, se as árvores não falam, pelo menos ostentam placas que lhes revelam os nomes. Dê ou não um filme, a Mata da Margaraça tem muito que contar, e a ela voltaremos de olhos e ouvidos bem abertos.

6 comentários :

bettips disse...

Encanto.
Verdade.
Poesia nos bocados de país/sentimento.
(devo estar a repetir-me mas é o que sinto)
Abç

José Batista da Ascenção disse...

Sim, a Mata da Margaraça tem muito que contar. Mas há quem possa contar muito mais e bem sobre a Mata da Margaraça. Experimentem visitá-la com o meu muito querido e "antigo" professor de Coimbra - o Dr Jorge Paiva. E verão então a Mata da Margaraça, muito para além do visível na Mata da Margaraça. Desculpem este meu entusiasmo, só de pensar na ideia...

Ko & theonetoo disse...

Pensei que tinham entrado em desamor pela blogosfera. Obrigado por existirem assim tão comoventemente belos.

Paulo Araújo disse...

Obrigado por comentarem. A Margaraça foi a nossa porta de entrada para as terras do Alva - que, por estarem de tal modo estragadas (como quase todo o país, aliás), não são assim tão encantadoras. Poesia? Não sei. Talvez apenas uma melancólica sensação de desperdício - e um grande filme que transfigurou aqueles lugares, sem deixar de os mostrar tais como são (e de um modo tão verdadeiro como nunca tinha visto em cinema português).

José Batista:

O que nos levou a visitar a Mata da Margaraça foi uma reportagem na revista do Parque Biológico em que era justamente entrevistado o Prof. Jorge Paiva. A ele se deve o facto de a mata ser hoje um espaço protegido.

Luz disse...

Ai que saudades das terras d´ Alva!!!

Rui Marques disse...

Isto para mim é o Portugal Melhor!

Excelente regresso de vós e que por aqui fiquem durante muito tempo.

Rui Marques