10/08/2005

O papel de malmequeres


Foto: pva 0503 - Osteospermum ecklonis

«O papel de parede fora escolhido pela embaixatriz (...) A embaixatriz era originária do campo. No campo há flores. No campo evocado ainda mais. A embaixatriz inclinava-se para as flores. Para as flores não em estado ou circunstância de jarra, entenda-se, mas para aquelas que alegram, humílimas, pastos e bosquetes, para aquelas que a sandália de São Francisco pela certa sempre evitou. Hesitara entre um papel que repetia, sobre fundo verde-claro, uma papoila encurvada, quase borboleta ao vento, e um outro que recapitulava, palmo a palmo, um tufo de malmequeres. Por sentimento, foi para os malmequeres. Por cálculo, evitou a papoila (...)

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Dois meses decorridos, já o gato siamês («O teu terceiro filho!», como dizia o embaixador) desfizera, pétala a pétala, um tufo de malmequeres à altura da pata. O bichano, de seu normal, não era destruidor. Qualquer almofada ou pufe lhe servia de pedestal para as intermináveis sonolências de deusete. À entrada de alguém, abria e fechava as pálpebras. Tirado o retrato ao efémero, reentrava na moleza da sua eternidade. Um tufo de malmequeres - e só aquele! Não havia, perto, franja ou pingente que pudesse, com mecânicas negaças, lembrar ao gato que era gato. Nenhuma sombra dançante ali se projectava.
- Caprichos do Amok! - decidiu a embaixatriz (...)
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Ao sair o último convidado, um comissário de peito refulgente, o embaixador abandonou-se à poltrona, folgou o colarinho e pediu à embaixatriz que mandasse deitar as criadas e lhe preparasse um uísque (...) A embaixatriz trouxe-lhe o uísque e a carinhosa repreensão do costume. A chá de limão acompanhou o marido. Os dois acabaram por tirar os sapatos. A embaixatriz enroscou-se, escondendo as pernas sob a saia. O embaixador esticou-se e fez ginástica com os dedos dos pés. Dedos a mexerem dentro de peúgas. Dedos de embaixador dentro de peúgas de embaixador. De embaixador, que chatice, e logo num país daqueles! Comissários que entram com o peito a cintilintar...
- ... E se calhar amanhã cais em desgraça!
- Quem? Sobressaltou-se a embaixatriz.
- Estava a pensar no comissário...
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Com pezinhos de lã - esse não precisava de tirar os sapatos - Amok aproximara-se. A embaixatriz ensaiou tagatés. Amok não ligou. Parecia fascinado. Passou, como um fantasma, entre o homem e a mulher. Correu. Estacou junto à parede. Retesou-se. Saltou de pata no ar sobre o tufo de malmequeres destruídos. Bufava e rouquejava.
Embaixador e embaixatriz entreolharam-se. Sérios. Ouviram, então, um estalido que vinha do interior da parede. Um simples ruído nítido.
- Ratos? - perguntou a embaixatriz com a chávena suspensa entre beber e entornar.
- Microfones! - respondeu o embaixador pousando o copo.
E com uma ponta de orgulho, o homem levantou-se e foi acalmar o Amok. Com uma ponta de orgulho, sim! Ele, o pequeno embaixador do pequeno país, já merecera a «visita» dos microfones...»

Alexandre O´Neill, Uma coisa em forma de assim (Editorial Presença, 1985)

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