23/08/2004

Cipreste com laranjas

«- Isto deu-se há muito tempo, já não é da minha lembrança nem da dos mais velhos que há aí na vila. (...) Quando começou a constar que a sede do concelho vinha para cá, os de Sendim não queriam deixar nem à mão de Deus padre. Que não senhor, que não vinha. (...) Tocaram os sinos a rebate, pegaram em armas e juraram por todos os santos que Valeiros só seria vila quando o cipreste do largo desse laranjas. T' ás a ver o gozo, ó Jorginho: o cipreste dar laranjas... Como quem diz: nunca jamais em tempo algum. (...) O certo é que o decreto saiu mesmo e vão então os de Valeiros, para aporrinhar os de Sendim, no meio do estrondo dos foguetes e da banda marcial de Murça, assubiram-se ao cipreste e penduraram nele, com guitas, dois quarteirões de laranjas (...). E agora Valeiros é que é a vila (...).
Ambrósio Sardinha ria-se da picardia, saboreava-a como se nela se tivesse empenhado pessoalmente, dava palmadas gozosas nas coxas: era um valeirense dos quatro costados, orgulhoso dos feitos dos trisavós que subiram ao cipreste para suspender laranjas dos seus ramos já quebradiços da muita idade.»

A. M. Pires Cabral, A loba e o rouxinol (2004)

2 comentários :

Anónimo disse...

Andava eu nas etiquetas deste blog à procura de outro tema quando, por ser o primeiro, vi a etiqueta de Pires Cabral e, sendo um autor que muito aprecio, abri a publicação referente. Li esse livro há pouco mais de um ano e recordo perfeitamente essa passagem, especialmente porque, com grande coincidência, por essa altura andava a circular um anúncio, no mínimo bizarro, com piada por um lado, com pena pela ignorância que demonstra, por outro.

O BPI decidiu utilizar o castanheiro monumental de Guilhafonso num vídeo publicitário (até aqui, óptimo, seria até de louvar...) mas achou que, provavelmente, o castanheiro e a castanha não seriam o melhor veículo para passar a sua mensagem...

Bom, pelo menos podemos supor que o autor da campanha também aprecia Pires Cabral e se inspirou neste trecho do livro para pendurar (talvez digitalmente, não o sei comprovar) dezenas de laranjas no castanheiro.

(Não encontrei referência a esse anúncio no blog, por isso vo-lo deixo aqui)

https://www.youtube.com/watch?v=TRYsZc87FrU

Como é óbvio, pelo menos no meio da castaneicultura, isto deu origem a várias piadas, havendo uma a circular no facebook do género: "Os bancos fazem mesmo milagres. Até conseguem pôr um castanheiro a dar laranjas". Ainda bem que os comentários ao vídeo estão desactivados, caso contrário seria um fartote. :)

João Vicente

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelo proveitoso comentário. Não sei bem o que pensar do castanheiro que dá laranjas. Se fosse noutro país, o vídeo poderia ser uma tentativa de humor, mas por cá os bancos são coisa muito séria e a publicidade institucional não é para graças. O BPI quer-nos mesmo fazer acreditar, com aquela laboriosa metáfora da família encharcada, que é um abrigo contra as tempestadas financeiras, como aquela espantosa laranjeira é um abrigo contra as tempestadas reais. Deve ser ignorância, e da mais aflitiva. Julgava que toda a gente, mesmo não sendo capaz de reconhecer um castanheiro, saberia que as laranjeiras não atingem desses tamanhos. Mas afinal há marcianos entre nós, e um deles até fez este vídeo.